Origens e Evolução do Canários de Porte
1. Origens da Canaricultura
A história da criação de canários, ou canaricultura, iniciou-se logo após as primeiras expedições às ilhas Canárias após 1402, quando Henrique III enviou os seus navios ao Arquipélago das Canárias, numa expedição liderada pelos capitães Juan de Béthencourt e Gadifer de la Salle, dois normandos ao serviço do Rei. Estas ilhas, conhecidas desde a Antiguidade, eram habitadas por povos nativos, descendentes dos berberes do norte de África, denominados Guanches. Os exploradores ao serviço de Espanha logo após a conquista das ilhas, descobriram um pássaro fringilídeo em estado selvagem que cativou os navegantes e os primeiros colonos espanhóis, tanto pela beleza da sua plumagem como pelo seu canto.
Começaram aí as primeiras importações de canários silvestres – o Serinus canaria - para a Europa continental, com destino sobretudo às casas reais, sendo então muito valorizados pelo seu canto prolongado e melodioso, que era comparado à música Renascentista que estava então a dar os primeiros passos. Pensamos que também dos Açores foram exportados muitos canários para o continente europeu logo desde o início do século XVI, embora exista ainda investigação a decorrer sobretudo com base nas listas de mercadorias dos navios portugueses que aportavam aos Açores.
É de notar que esta ave foi denominada Canário devido ao nome dado ao arquipélago - Ilha dos Cães - por causa da existência em estado selvagem da uma determinada raça de cães muito comum nas ilhas no tempo dos Guanches. Portanto ao contrário do que algumas pessoas assumem, não foi o canário que deu o nome às ilhas, mas sim o contrário.
Após um período em que apenas os machos eram vendidos, mantendo assim o monopólio da criação e comercialização nas mãos de espanhóis e portugueses, em pouco tempo os canários ocuparam um lugar de honra nas casas reais e da nobreza por toda a Europa. Sabemos que Luis XI de França detinha e criava já canários nos finais do século XV. A fama dos canários espalhou-se pela Europa Central no século XVI, vindo a tornar-se muito populares entre os artesãos normandos e flamengos que os começaram a criar. Na sua origem silvestre, o Serinus canaria, tinha penas escuras com tonalidades verdes, cinzas e amarelas e foram eventualmente estes artesãos que conseguiram obter e fixar geneticamente as primeiras mutações no canário - como o acianismo parcial, os castanhos e talvez as penas frisadas e as poupas.
Em 1551-1555 Conrad Von Gessner publica o seu primeiro tratado de zoologia ‘’Historia Animalium’’ e descreve já o canário a que denomina ‘’Avicula Sachari’’ (Passáro de Açúcar) devido a que nas ilhas Canárias no século XVI se exportava já muita cana de açúcar, e mesmo alguns mapas da época chegaram a denomina-las ‘’Ilhas de Açúcar’’. Como estas aves viviam principalmente nas plantações de cana de açúcar, nasceu uma lenda em que se acreditava que o facto de se alimentarem basicamente de cana de açúcar, era o motivo do seu canto ser tão doce e limpo, o que obviamente não tem bases científicas.
Numa passagem da sua obra, Gessner dá-nos uma pista acerca da popularidade do canário na Europa em meados do século XVI quando refere:
“…é muito procurado por toda parte…tanto pela doçura do seu canto, como por vir de muito longe, com grande zelo e diligência, mas é raro e só pode ser mantido por nobres e senhores…”
Na mesma altura, na segunda metade do século XVI muitos huguenotes, que estavam a ser perseguidos e massacrados pela coroa francesa por serem protestantes, fugiram para Inglaterra, mas não conseguiram deixar os seus canários para trás e foram assim responsáveis pela expansão e democratização da criação de canários em Inglaterra, país com uma longa história de criação de canários e que continua a ser ainda hoje o país com mais raças de canários de forma e posição diferenciadas e homologadas.
No século XVII já os canários eram criados por muitos europeus (no continente e nas ilhas britânicas) e a sua procura e o seu comércio eram já muito grandes.
Especialmente da zona do Tirol, que se converteu no centro mais importante de produção de canários, eram exportados para toda a Europa, com a ajuda dos Buhoneros (vendedores ambulantes), pessoas especializadas no transporte de todo o tipo de pássaros. Em todo os países esperavam a sua chegada ansiosamente, organizavam festas, mercados e competições entre os compradores e os criadores locais, procurando os exemplares com mais qualidade para o canto.
Na segunda metade do Século XVII, em 1675, Joseph Blagrove em “The epitome of the Art of Husbandry” refere:
“…o pássaro conhecido como canário (com o melhor canto de todos) foi trazido das Canárias; agora é criado em grande quantidade na Alemanha e na Itália também…têm sido criados alguns aqui em Inglaterra, mas ainda não tantos como tem sido feito noutros países…”, “…são alimentados com a mesma comida que os pardais…linhaça, painço, …mas ficam encantados com cana do açúcar, e é assim que lhes estimulam o canto…”
2. Evolução dos Canários de Postura
O canário silvestre (Serinus canaria) é uma ave passeriforme de cerca de 12,5 - 13 cms com fronte, faces, garganta e peito verde acinzentado, com matizes de amarelo ouro; ventre mais esbranquiçado; parte superior do corpo com marcações cinzentas e pardas; asas e cauda pardas com reflexos verdes e amarelos; extremidades das rémiges e rectrizes acinzentadas; bico marfim e patas pardas.
O Serinus canaria, tal como o Serinus serinus com o qual é aparentado, apresenta dimorfismo sexual. Os machos apresentam matizes amarelo-ouro enquanto que as fêmeas têm tonalidades menos amareladas e mais pardas.
O canário silvestre ocorre ainda, em grande número, no nosso arquipélago dos Açores, em especial na ilha Terceira, mas felizmente hoje em dia está proibida a sua captura.
Entre os séculos XVI e XVII os canários que se foram espalhando pela Europa eram sobretudo os canários silvestres, que eram exportados das Canárias e Açores, e os resultados das criações que eram feitas por nobres e artesãos. É quase certo que na segunda metade do século XVII tenham sido obtidas algumas mutações acidentais, como por exemplo alguns exemplares de poupa, canários com acianismo parcial ou outras mutações, mas não existem registos históricos que o comprovem.
Os alemães foram, sem dúvida, os mais seletivos e escrupulosos no cuidado e forma de criar os exemplares, muito em especial no relativo ao canto, e muitos dos melhores exemplares eram criados na zona de Nuremberga.
Em “Ornithology” de 1676 Francis Willughby refere: “os canários têm sido trazidos abundantemente da Alemanha, e são agora chamados de alemães…e já excedem os dotes de canto dos que são trazidos das Canárias…são alimentados com alpista, donde tiram grande prazer, que é trazida das mesmas ilhas…”
Em “The Gentleman Recreation” de 1686 é também referido que “os canários em Inglaterra são quase totalmente verdes e importados da Alemanha…
Os primeiros registos históricos de mutações no canário silvestre surgem no início do século XVIII, quando é publicado o livro “Nouveau Traité aux Serins” da autoria de Hervieux de Chateloup. Hervieux era “Gouverneur des Serins” de uma nobre francesa conhecida como “Madame La Princess”.
Neste livro Hervieux lista e classifica 29 variedades de canários por cores e características principais. Com base nesta lista é possível saber que no início do século XVIII já existiam diversas mutações, algumas que ainda existem nos dias de hoje, a saber:
Canários brancos, canários cinzentos, canários amarelos, canários marfim, canários castanhos, canários variegados, canários de olhos vermelhos, canários frisados, canários Lizard (considerada a mais antiga raça existente), canários marcados regulares de amarelo e negro (canários London Fancy extintos no final do século XIX, e recentemente recriados) e canários de poupa.
O livro de Hervieux foi traduzido em alemão, em inglês e mesmo em português, devido à enorme popularidade do canário na Europa.
A edição portuguesa datada de 1801 do “Tratado sobre o Modo de Crear os Passaros Canarios – Maneira de os cazar para tirar formosa casta deles…”. desta obra em português, demonstra o enorme interesse dos portugueses dos séculos XVIII e XIX pelos canários e pela sua criação.
É assim quase certo que em finais do século XVII e princípios do século XVIII em França existiam já algumas mutações do canário silvestre, mas também é muito provável que na Alemanha, Holanda, Itália, Espanha e Inglaterra existissem também essas e outras mutações que começavam a afastar anatomicamente e morfologicamente o canário doméstico do canário silvestre.
No início do século XIX, publicam-se muitas obras dedicadas à criação de canários, especialmente em Inglaterra, onde muitas das mutações afetando sobretudo a forma e posição tinham vindo a ser desenvolvidas e aprofundadas com base numa rigorosa seleção artificial, recorrendo a técnicas de “inbreeding” e “linebreeding”. Nestas obras começaram também a aparecer as primeiras litografias das principais raças inglesas já existentes, que hoje nos permitem avaliar as evoluções ocorridas nos últimos 200 anos.
Em Inglaterra apareceram de facto as principais raças de porte, e os criadores de cada região dedicavam-se a selecionar raças distintas e geneticamente fixadas, levando a uma proliferação de raças que eram mostradas em exposições por todo o país. Deve-se aos criadores ingleses e ao seu natural temperamento e hábitos associativos o surgimento da ornitologia desportiva tal como a conhecemos hoje.
Muitas destas variedades de canários ingleses surgidas e selecionadas a partir do século XIX, sobretudo raças de Porte (Forma e Posição) de plumagem lisa, continuam a existir hoje e assim a Inglaterra mantém-se como o país com mais raças de Porte homologadas internacionalmente.
Por outro lado, em especial ao longo do século XX, surgiram muitas outras raças em França, Suíça, Espanha e Itália, sendo que nestes países os criadores se dedicaram mais à seleção de raças de Porte (Forma e Posição) de Plumagem Frisada, surgindo assim muitas raças frisadas ligeiras e pesadas.
Os criadores de outros países como Alemanha, Portugal e Bélgica selecionaram e têm homologadas sobretudo raças de Porte (Forma e Posição) de Plumagem Lisa. Atualmente contamos mesmo com uma raça do Irão.
Obviamente merece especial e justo destaque a nossa raça nacional – o Arlequim Português – que abordaremos em mais profundidade num outro artigo.
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